O dia era 30 de outubro de 2022. Os relógios das casas em todo Brasil marcavam 19h56 (horário de Brasília). Com 98,91% das urnas apuradas, Lula foi eleito, pela terceira vez, presidente do Brasil. Para vencer a máquina de Bolsonaro (primeiro presidente que não se reelegeu desde 1997, quando adotamos o sistema da reeleição [1]), o petista uniu ao seu redor uma gama de partidos, empresários, banqueiros e adversários ideológicos e históricos. Para não deixar dúvidas sobre a frente ampla, hoje Geraldo Alckmin é o primeiro na linha sucessória presidencial, fazendo parte da chapa que venceu com uma micro vantagem de 1,8% dos votos.
O clima de vitória do fim de outubro de 2022 foi sucedido pelas articulações intensas, principalmente sobre pautas econômicas de cortes de gastos. Em troca da aprovação de alguns projetos, Lula cedeu — apenas para Arthur Lira — o Ministério dos Esportes, a presidência da Caixa Econômica e a assessoria especial responsável pelas apostas esportivas, além dos R$ 53 bilhões no Orçamento de 2024, somando as emendas de comissão, bancadas e individuais.
Se contarmos cargos de primeiro escalão em ministérios, órgãos e secretarias com status de ministério, o governo contempla 12 partidos: MDB, PCdoB, PDT, PP, PRD, PSB, PSD, PSOL, PT, REDE, Republicanos e UNIÃO. Tanto na Câmara como no Senado, essas 12 siglas dariam, em teoria, ao governo, quase 72% dos votos das casas legislativas. Mas isso em teoria. A política real e o presidencialismo brasileiro são outros quinhentos e treze.
DESIDRATAÇÃO DO GOVERNO E QUEDA DA ESQUERDA
Ao mesmo tempo que cede muito, notamos uma rápida desidratação na aprovação do governo Lula, diferente dos mais de 80% de avaliação positiva em 2011, quando passou a faixa para Dilma. [2] As pesquisas mais recentes de avaliação do governo federal não foram boas para a frente ampla de união e reconstrução liderada por Lula. No último mês de maio a Quaest mostrou uma rejeição do presidente de 47%, empatando na margem de erro com a aprovação de 50%. [3] No mesmo mês, 49,6% dos entrevistados da Paraná Pesquisa desaprovavam a gestão petista contra 46,2% de aprovações. [4] Ainda em maio, segundo a Atlas/Intel, o governo era aprovado por 51% da população contra 47% de desaprovação, mais um empate na margem de erro. [5] A mais recente pesquisa do Datafolha mostra uma aprovação de 36% contra 62% de pessoas que reprovam ou consideram o governo regular. [6] E os números não são ruins apenas para o petismo.
Em janeiro deste ano, a Futura Inteligência mostrou a esquerda em baixa nas maiores capitais do país. O levantamento não aponta esquerda como ideologia preferida da maioria das pessoas em nenhuma das 15 capitais pesquisadas. A esquerda só aparece como o segundo posicionamento mais comum em Florianópolis, com 23,3%. Nas demais, os direitistas e os que não têm preferência se revezam em primeiro ou segundo lugar. [7]
Como o governo entrega tudo que o centrão pede, comemora aprovações de seus projetos e não cresce em popularidade? Quais serão os reflexos disso nas eleições de outubro? O que a esquerda, que tem hoje o poder máximo da república, precisa fazer para mudar esse cenário? Isso é o que tentaremos analisar nas próximas linhas.
ONDE A ESQUERDA VEM ERRANDO?
Pouco menos de 10 meses após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nós defendemos o nosso TCC [8] — no curso de Jornalismo — destacando que a esquerda brasileira teria grandes dificuldades nas eleições seguintes caso não se reaproximasse das bases e dos movimentos sociais. Identificamos, na época, que as páginas de esquerda, na internet, cumpriam bem esse objetivo, o que não ocorria com as legendas partidárias. A esquerda, centralizada no PT, sempre tem entre 20% e 30% do eleitorado nas eleições, mas ele fica longe das redes. E (lá vem clichê) como não existe vácuo na política, a direita ocupou esses espaços de disputa.
Nossa conclusão, à época, teve como pilar uma Pesquisa da Fundação Perseu Abramo (do PT), divulgada naquele mesmo ano, que constatava a perda, nas eleições de 2014 e 2016, de um público até então fidelizado por 12 anos pelo PT. Lá, como hoje, percebemos e seguimos percebendo uma esquerda que vem tendo medo de rua. A própria Dilma foi derrubada pois estava acuada à beira do precipício após tantos recuos. Identificamos que se os partidos não ignorassem as discordâncias burocráticas, se unissem ainda mais aos movimentos sociais de rua, penetrassem nos rincões e onde estão as classes mais baixas do país, dificilmente conseguiriam voltar ao poder em 2018.
O caminho parece se repetir novamente, com Lula, líder das maiores greves do Brasil, surpreendentemente criticando a atual greve dos professores estaduais e federais, essencias para a vitória petista em 2022. Imagine o efeito disso em quem passou quatro anos sendo alvo da comunicação bolsonarista?
Hoje, no Brasil, chegamos ao ponto de que toda ação crítica ao governo Lula é, para parte da esquerda, fortalecer a extrema-direita e o bolsonarismo. Com isso percebemos que o governo cria um escudo de proteção, se acua e as demais forças políticas crescem, como é o caso da Câmara dos Deputados sob o comando de Arthur Lira. O sentimento que tenho, ao ler e acompanhar os intelectuais da esquerda próximos ao PT, é de que o governo precisa sempre estar pisando em ovos e deixando “para lá” algumas pautas históricas do partido e das esquerdas.
A FALÁCIA DA CORRELAÇÃO DE FORÇAS
Um dos argumentos da esquerda petista é de que o governo Lula não tem correlação de forças com o Congresso — o que nenhum governo teve —, e por isso ele evita entrar em certas divididas. Mas se esquecem que o Gustavo Petro, primeiro presidente de esquerda eleito na Colômbia (tida tempos atrás como a Israel latina), foi eleito em um cenário muito pior que o Brasil em 2022, tem minoria no Congresso e vem implantando seus programas que foram eleitos pela população. Ele puxa a corda o máximo que pode para a esquerda, educa e convoca seu eleitorado e tem conseguindo aprovar seus projetos.
A própria correlação de forças impõem que existam duas forças, mas o que vemos é apenas uma: a direita pautando o debate e a esquerda se defendendo. A imagem da esquerda sempre foi de luta e confronto, inclusive muitas vezes considerada “utópica”, bem diferente de projetos estranhos à esquerda propostos pelo governo, como o projeto do Haddad de colocar fim aos mínimos constitucionais da saúde e da educação, proposta que nem FHC ou até mesmo Bolsonaro tiveram coragem de tocar.
SAÍDAS
Hoje, liderada pelo PT, a esquerda é amada por 1/3 do Brasil e odiada pelo outro 1/3. Isso deixa aproximadamente 50 e poucos milhões de eleitores em disputa. Vejo hoje quatro problemas que afastam a esquerda das necessidades reais da população. Vamos a eles.
1. INTERNET COMO BRAÇO AUXILIAR
Acreditamos que a esquerda não pode e não deve utilizar a internet como meio principal de divulgação, mas como um braço das ruas e do mundo físico, visto que os donos das grandes empresas de tecnologia não estão nada alinhados com esse espectro. Não faltam exemplos como os de Elon Musk ou as campanhas do Google (investindo R$ 670 mil no seu rival Meta) contra o chamado “PL das Fake News”. [9] A esquerda precisa voltar as ruas, as associações de bairros, igrejas, ONGs, etc. Hoje os pentecostais e testemunhas de Jeová sabem mobilizar muito mais do que a esquerda.
2. MENOS TEORIA E MAIS PRÁTICA
A esquerda brasileira precisa parar de se colocar em um pedestal como “dona da verdade”, como se apenas ela fosse o bastião moral do Brasil. É preciso ouvir mais e aprender com a dura vida da maior parte da nossa população. Hoje temos uma parcela de brasileiros que se contentam em receber informações apenas via YouTube ou TikTok, ignorando acadêmicos ou especialistas. Criticá-los ao invés de entendê-los é um erro.
3. FALTA DE PROFUNDIDADE
A esquerda precisa abandonar frases de efeito e palavras de ordem e começar a detalhar seus projetos. Até dentro da esquerda frases como “Fora Temer”, “Ele Não”, “Não Vai Ter Golpe” viraram piadas. Um exemplo excelente é o “picanha e cerveja”, que resumia um projeto de mais dinheiro no bolso da população. A frase de efeito na política deve ser utilizada para despertar atenção, mas se ela se torna um fim em si mesma deixa de ter propósito.
4. PAUTAR UM DEBATE REAL
Esse para nós é o principal ponto. A esquerda precisa parar de glorificar países socialistas ou experiências passadas (como a URSS) sem entender a realidade rica e única que o Brasil tem. Ninguém na vida real se importa com Trotsky, Stalin ou Marx. As pessoas querem saber como vão ter mais dinheiro no bolso mês que vem do que tiveram no mês passado e como sairão dos supermercados com mais comida amanhã do que saíram hoje. A população quer alguém do seu lado lutando pela melhoria da sua vida hoje e uma esperança de um futuro melhor para as novas gerações dos que estão ao seu redor.
A extrema-direita passou anos atacando as universidades para descredibilizar os milhares de estudantes que o PT colocou nessas instituições. Deu tão certo que hoje alguns temas sem fundamento viralizam sem que a academia consiga interrompê-los. Parte do eleitorado da extrema-direita mundial despreza quem se dedica à ciência, isso é um fato gostem ou não. A direita, mais recentemente, mirou suas armas nas mulheres, via “PL do Estuprador”. Isso não é força do acaso, o público feminino foi essencial nas eleições de 2022 e é o grupo que mais rejeita o bolsonarismo. Falta ao governo (assim como na greve dos professores ou quando a população defendia a redução dos juros) usar ainda mais essa pauta para dar uma guinada de 180º no debate público e colocar a direita na parede, longe do campo que eles dominam.
Aquela direita caricata da “mamadeira de piroca” ou “kit gay”está sumindo e se empermeando em associações de bairros, igrejas, grupos digitais, etc. A esquerda precisa tirar a direita de pautas abstratas e debater os fatos. Quando eles falam em desestatizar ainda mais tudo que for possível, isso soa como música aos ouvidos de quem está comendo o pão que o diabo amassou sendo espremido nos transportes públicos pelo Brasil. Mas e os dados contrários, e o dinheiro do setor público que são transferidos para as grandes empresas de mobilidade? Parece óbvio, mas quando foi a última vez que você que nos lê viu alguma panfletagem sobre isso nos metrôs ou pontos de ônibus? Lula está no poder e pode pautar qualquer debate, ele pode convocar a cadeia de rádio e TV quando quiser. A esquerda atual quando não está se explicando está se defendendo. Em Belo Horizonte, a pauta contra as empresas de ônibus, pauta histórica da esquerda, ganhou voz em todas as áreas, com as empresas de ônibus sendo alvo de críticas até de membros do partido Novo. Isso é o que acontece quando se debate o real: desperta interesse nas pessoas mais afetadas.
CONCLUSÃO
Além de não dar uma guinada para o caminho oposto que vinha sendo construído desde Michel Temer, Lula vê sua aprovação cair e pode passar por dificuldades em eleger prefeitos em pontos-chaves em 2024 ou até mesmo em manter o PT no poder federal até 2030. Assim como Lula não teve a tão falada lua de mel em 2023, chamar o povo de fascista e liderar uma frente “pela democracia” pode não surtir efeitos no coração do eleitorado. Culpar a herança maldita duas vezes também não cola mais.
O presidente Lula não faz e muito menos sinaliza para qualquer movimento que afaste a direita e os militares do governo, tanto em quadro como em políticas. Isso pode fazer com que a esquerda se perca em suas táticas de pelo menos igualar o feito petista de vencer quatro eleições presidenciais consecutivas.
A direita brasileira hoje tem a missão (e vem fazendo um bom trabalho) de enfraquecer o Lula e o PT, e consequentemente a esquerda e retomar o poder. Para a esquerda, os desafios são dois: governar e conquistar corações e mentes, OBRIGATORIAMENTE nesta ordem.
REFERÊNCIAS
[5] https://www.poder360.com.br/pesquisas/51-aprovam-e-47-reprovam-governo-lula-diz-pesquisa/
[8] https://www.linkedin.com/in/rodolphodalmo/overlay/1635541824233/single-media-viewer/?profileId=ACoAAEb5Ry8BIWGI6XlUZa_Ptmla8aFhO1a8klA
[9] https://apublica.org/2023/05/google-pagou-mais-de-meio-milhao-de-reais-em-anuncios-no-facebook-contra-pl-das-fake-news/